sexta-feira, 20 de março de 2020

COMO UM RIO CORRENDO PARA O MAR


Naquela viagem pela linha do Douro, olhava pela janela do comboio, e à medida que se aproximava do litoral, os aglomerados de casas, iam-se tornando maiores. A paisagem mudava lentamente. Os montes socalcos das zonas vinhateiras iam desaparecendo, dando lugar, a vales férteis e montanhas de grandes pinheiral.
Joaquim sabia que à chega ao Porto, restava-lhe pedir emprego nas obras, pois já tinha alguma experiência na arte de construção de pequenas obras. Ao chegar à estação de S. Bento, deparou-se com um movimento fora do comum. No princípio de 1960, Peso da Régua era uma localidade pequena, apesar de ser já um pouco desenvolvida, devido ao comércio dos vinhos do Douro. Deambulavam pessoas de um lado para o outro, e Joaquim sentia-se um pouco perdido naquela estação do grande Porto.
A primeira coisa que tinha de fazer, era encontrar um quarto para dormir, que não foi difícil, a oferta era muita. Depois de se aposentar numa pequena e modesta pensão, não perdeu tempo. Logo de seguida, perguntou à senhora de corpo farto, e olhos esbugalhados, que estava na portaria, onde poderia encontrar trabalho na construção civil. Segundo ela, conhecedora de coisas das redondezas, disse-lhe para procurar, num quarteirão mais à frente, logo ao virar da rua.
Depois de falar com o encarregado da obra, ficou de se apresentar no dia seguinte para trabalhar a pedra dos pilares da construção. Foi mais fácil do que podia imaginar, logo no primeiro dia, viu o seu principal problema resolvido, e até ia ganhar muito mais, do que ganharia no Peso da Régua como pedreiro.
Angélica vivia com uma tia, devido à morte de sua mãe aos seus doze anos. O pai nunca conheceu, nem sabia do seu paradeiro. Tinha sido fruto de uma paixão tórrida, mas que acabou pelo seu pai ao saber da gravidez de sua mãe, desertar da vista da sua progenitora. Nunca mais se soube da existência do homem. Angélica de fisionomia baixa, cabelos encaracolados acastanhados, levava uma vida de trabalho na loja da tia, que a acolhera, e que se serviu dela como sua empregada, para todos os serviços. Sua tia era uma solteirona, que tinha vindo dos lados da ribeira, e com o dinheiro de uma herança montara a sua retrosaria no centro do Porto. Viviam por cima do estabelecimento, numa casa modesta, mas bem arranjada.
Angélica no seu atendimento simpático ia agradando e recebendo cada vez mais clientes para a loja. Até que um marialva apanhou o coração dela e a engravidou de uma menina, como seria de esperar naquele tempo, o marialva não assumiu a filha e pôs-se a milhas, deixando-a com uma filha de colo nos braços. Mesmo assim, Angélica que era mulher de rasgo, não desanimou, e foi criando a sua filha, com a ajuda da tia.
A loja era perto da pensão onde Joaquim morava, e todos os dias, ele passava à porta da retrosaria, quando vinha do trabalho pelo final da tarde. Começou-lhe a chamar à atenção aquela mulher dos seus vinte e pouco anos, vestida sempre bem asseada e de olhos penetrantes, quando por vezes se cruzavam na rua. Joaquim também era uma boa silhueta. Até que um dia, ele já a sentir uma certa paixão platónica por Angélica, abordou-a, dizendo: - Sabe menina, nestes meses que tenho vindo a cruzar-me consigo, tenho sentido uma vontade enorme de a conhecer, porque, realmente, você é muito bela.
Angélica corou um pouco, mas não se deixou ficar atrás, porque também ela, gostava da aparência dele.
- Sabe o senhor que eu sou mãe, e talvez isso seja um impedimento para nos conhecermos…
Joaquim, vendo a franqueza dela, respondeu:
- Menina! Quando o amor é belo, nada é impedimento.
E assim passado uns meses de conversa e saídas para o cinema, resolveram, casar-se.
Os anos foram passando, e Joaquim não parava de fazer filhos à esposa, até que numa viagem de trabalho, o encarregado e Joaquim tiveram um acidente fatal. A carrinha onde viajavam saiu da berma da estrada, caindo num desfiladeiro e a carga que transportavam esmagou aos dois, foram duas mortes imediatas.
Angélica estava grávida do seu sétimo filho, mas Deus não quis que viesse ao mundo outro ser… Contava-se pelas redondezas que havia uma parteira, sempre pronta para fazer abortos, e Angélica desesperada, e já com seis filhos no regaço e viúva, foi pedir auxílio à parteira. Esta mandou-a meter-se na banheira em água a ferver, que logo o feto era expelido. E assim, Angélica na sua inocência, e já de quatro meses de gravidez, meteu na banheira em água a ferver. A tragédia aconteceu, Angélica ficou completamente queimada, não resistindo às queimaduras, e às convulsões do aborto. Ficou ali, prostrada na banheira com o corpo queimado e ensanguentado do aborto espontâneo.
Todos os filhos dela já tinham emigrado, muito novos para França, estava-se no final da década de 60 do século XX, e a emigração clandestina estava a fazer-se em força. Era uma emigração por assalto nas terras raianas do norte de Portugal, onde eram corrompidos os guardas-fiscais, e por montes e vales percorriam a pé ou de outras formas, toda a vizinha Espanha para chegarem “à terra prometida”, França.
Com a tia ficaram três filhas, duas pequeninas, uma com quatro anos, Andreia, e Luísa com seis. A tia já de idade avançada, já não tinha forças para criar os dois rebentos que restavam daquela família destroçada. A filha mais velha, já com dezoito anos, trabalhava numa confeitaria, mesmo ali ao pé, de um casal bem encarreirado na vida. Angélica era conhecida da confeitaria, e por vezes levava Andreia e Luísa, com ela. Lurdes, a filha mais velha, contou o que se tinha passado, a Dª. Felisberta, proprietária da confeitaria. A senhora ficara em pânico, pois gostava muito de Angélica e de a ver com as pequeninas, entrar na confeitaria. Em certa altura, Angélica, numa das visitas à confeitaria depois do trágico acidente de Joaquim, seu marido, disse a Dª Felisberta, que se um dia lhe acontecesse uma tragédia, para que tomasse conta da pequenina Andreia. O casal dono da confeitaria não tinha filhos, e Dª. Felisberta tinha uma admiração muito grande pela pequenina Andreia.
Tudo se conjugou para que depois da fatídica tragédia de Angélica, Lurdes levou a pequenina Andreia para a confeitaria a pedido dos patrões. Lurdes tinha ficado com a loja da tia, e por isso teve que abandonar a confeitaria, aquando da morte da tia. Andreia lembrava-se do dia que a irmã a levou à confeitaria, chovia copiosamente, entraram no elétrico e ao chegar, as três irmãs estavam completamente encharcadas. Andreia ao entrar na confeitaria sentiu o calor e o cheirinho a doce quente. Dª. Felisberta, de coração aberto, pegou na pequena Andreia e em lágrimas apertou-a contra o peito, e disse, com convicção: “Tu vais ser a minha filha querida, meu amor! “.  
Luísa mais crescida um pouco, dos seus nove anos, foi adotada por um casal de Coimbra, e pouco ou nada se soube dela, estava longe do olhar das outras irmãs.
Lurdes, pouco depois da morte da tia, herdara a loja, mas apaixonando-se por um amigo que ia muitas vezes à loja, resolveu, casar, vender a loja, e juntar-se aos irmãos em França.
 Depois de tanta tragédia no meio daquela família, parecia que Deus tinha-lhes indicado o caminho do conforto do lar, e de uma vida feliz. Andreia já chamava pai e mãe aos seus pais adotivos.
Andreia passou uma infância sobre forte proteção dos pais adotivos, gostava de desenhar e fazer recortes de revistas. Vivia um mundo à medida de si mesmo, inventava peças de teatro, cantava para si, como se estivesse num espectáculo. Já adolescente, não tinha muita liberdade de movimentos, os pais adotivos viviam obcecados com ela, não lhe davam espaço de manobra. Era sempre acompanhada por eles nos passeios de domingo que faziam os três. Os estudos iam bem, era uma rapariga aplicada e com dezanove anos, já dava aulas. Pensava Andreia que ao casar iria obter a liberdade que lhe faltava, sairia das garras dos pais adotivos. Assim, depois do primeiro namoro, que não teve pernas para andar, conheceu aquele que viria a ser o seu marido durante quinze anos e pai de seus dois filhos.
em curso

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