O Bobo da Corte
"Os erros passam, a verdade
fica."
Diderot
Num reino distante, onde imperava a justiça do
Rei conquistador de um mundo de trevas, das injustiças e malvadezas de nobres
sem escrúpulos, vivia um Bobo como conselheiro do seu amo. Além das agilidades
para divertir a Corte e seu estimado Rei, tinha uma função pouco comum da maior
parte dos reinados do velho mundo. Sempre que alguém era chamado à presença do
Rei, este queria-o por perto para, subtilmente, lhe fornecer informações sobre
a pessoa em causa.
O Bobo era considerado bastante culto. Tinha-o
revelado, já que conseguia ler o íntimo das pessoas, entre outras aptidões como
encenador de peças teatrais, exibidas também por ele. Era de uma perspicácia
fora do comum, à qual o Rei não se alheava para resolver os casos mais
misteriosos. Pelo contrário, ele próprio sabia a quem recorrer, quando se
tratava de assuntos, mesmo os litigiosos e ninguém conseguia compreender como o
seu amo os resolvia tão facilmente. Abdicava, assim, dos conselheiros da Corte
para tomar decisões delicadas.
Vivia o Rei sossegado, uma vez que tinha sempre
por perto o seu estimado Bobo e, por isso, havia uma cumplicidade quase
desconcertante entre ambos. O Bobo, um servo da Corte, a quem nada faltava.
Apesar do vestuário que o caracterizava como um criado ao serviço do seu
senhor, todo ele era do melhor tecido vindo do Oriente, chegando,
inclusivamente, a usar da mesma indumentária que o Rei.
Os letrados da Corte e homens abastados, que
estavam sob a alçada daquele reino, tentavam descobrir o mistério do seu senhor
que, aos olhos de todos, era encarado como sábio. Mas o Bobo acompanhava-o
sempre e tudo fazia para proteger o seu Rei, pois estavam sempre juntos, sem
nunca o desamparar, mesmo que a doença o perseguisse. Embora, por vezes,
lutando com a enfermidade e, num estado febril, agia em prol daquele reinado,
que o acolhera.
Era um império celibatário. O trono não tinha
descendentes, por isso alguns familiares do Rei afiavam as unhas para tomar
conta do poder, logo que o Rei perecesse. Um sobrinho, o descendente direto,
não morria de amores por ele, e estava sempre a tentar arranjar conflitos,
incriminando o seu fiel conselheiro.
Um dia, numa caçada nos bosques da redondeza,
enquanto tio e sobrinho apetrechavam as suas armas, o Bobo seguia logo atrás
com a matilha de cães, mas este, sendo subalterno de ambos, teve de se ausentar
para obedecer às ordens do nobre sobrinho. Assim tentava um lance fatal para
incriminar o Bobo, ordenando-lhe que fosse buscar água ao riacho e, sem que os
dois se apercebessem, o Bobo e o Rei, o nobre sobrinho mandou por terra pedaços
de carne envenenada para os cães que por ali farejavam. Claro que estes
devoraram o pitéu para logo de seguida ficarem prostrados, mortos e sem ganir.
Quando o Bobo chegou, já o Rei o olhava desconfiado do acontecimento e
perguntou-lhe quem tinha sido o autor daquela carnificina. Ele, boquiaberto,
não sabia o que responder, apesar de ser um homem de resposta imediata. Por sua
vez, sorria de contentamento e com cinismo o sobrinho do Rei, pois sabia que a
responsabilidade pelos animais, de que tanto o seu amo gostava, era
inteiramente do seu fiel conselheiro. Por isso, o Rei, num ato de ira e incitado
pelo sobrinho, castigou o seu servo da Corte, mandando-o para terras do além. O
Bobo ainda implorou a sua inocência, mas de nada lhe valeu.
Os dias foram passando na Corte, desta vez já sem
a mesma animação, apesar de o Bobo ter sido substituído por outro, mas agora
somente para o divertir. O Rei solitário começou a sentir a falta das
confidências do seu Bobo, outrora tão estimado. E o sobrinho começara a
aproximar-se cada vez mais do seu senhor e a redobrar a sua confiança, no
entanto todos sentiam que os assuntos eram resolvidos com bastante repressão
por ostentação do “herdeiro” do trono e o Rei não via com bons olhos esta
magnificência, pois sempre conduzira o reino com justiça “séria”.
Os anos foram passando e não havia notícias do
Bobo da Corte; alguém inventara apenas que ele tinha sido morto por furtos
praticados, nas terras do além.
A tristeza pairava no coração do Rei, pois nunca
mais fora o mesmo. Irritava-se facilmente e não atendia os pobres que lhe
pediam ajuda, o que nunca fizera no tempo do Bobo. O povo estava a ficar
descontente com o seu amo e este, já com uma idade avançada, preparava-se para
delegar o trono ao sobrinho que, com lamentações medíocres, agia de forma a
conquistar, definitivamente, o poder.
As Cruzadas perduravam nas terras do além e
constava-se que um cruzado se distinguia pela sua força e coragem, nos planos
estratégicos face às conquistas aos infiéis. Ninguém sabia a sua origem, apenas
era conhecido por Guilherme, o estratega.
Um dia o Rei, já bastante debilitado e a braços
com uma guerrilha, contra o reino vizinho, solicitou a presença do presumível
sucessor, o sobrinho. Este, pensando que o tinha chamado para tomar as rédeas
do poder, apressou-se, a fim de apresentar todas e quaisquer informações sobre
táticas bélicas. Mas o Rei pretendia obter, somente, dados concretos sobre o
tal “estratega” das cruzadas, Guilherme, ordenando que o trouxessem até ele. O
sobrinho ficara desiludido, mas acatou a ordem do tio, pois teria de fazer tudo
o que lhe pedia para conseguir uma sucessão pacífica. Por isso, enviou um
mensageiro às terras do além, onde o audaz Guilherme o recebeu serenamente. Ao
receber a mensagem e sabendo que o seu amo estava em maus lençóis, falou com as
chefias e em grande cavalgadura foi ao encontro do seu amo.
Havia muito mais do que vassalagem e servidão
entre ambos! Havia companheirismo; amizade de longos anos; emoções fortes,
vividas por ambos na Corte. E Guilherme estava decidido a acabar com o grande
equívoco, que o separara da Corte e da relação amigável com o Rei.
Vestido de cavaleiro, com armaduras das Cruzadas,
imponente como as suas palavras sábias, aquando do tempo na Corte do seu Rei,
atravessou o velho continente, preparando, estrategicamente, o afastamento do
sobrinho, mal-intencionado às rédeas do trono. Sabia que tinha sido o cruel
sobrinho do Rei que lhe tinha feito a cilada e, para astuto, astuto e meio.
Toda a fisionomia do Bobo tinha mudado. Agora,
estava queimado pelo sol abrasador das terras do além; os cabelos caíam-lhe
pelos ombros e umas barbas rarefeitas preenchiam-lhe o rosto, sulcado pelas
vastas intempéries. Certamente que não o iria reconhecer, e isso era um trunfo
para ele.
Numa entrada imponente, com a sua armadura e
cabelos ao vento, Guilherme seguiu até aos paços do Castelo do Rei, onde
galinhas, patos e gansos esvoaçavam à sua passagem. E o povo dizia que era ele,
“o estratega” e acrescentavam: “Bendito sejas!”.
Toda a gente reconhecia que seria este homem que
salvaria o reino e suas vidas da tirania do reino vizinho, que tentava conquistar
aquele burgo, onde se vivia em paz, pelo menos até à expulsão do Bobo.
O nobre, sobrinho do Rei, prontificou-se a
receber o “estratega” das Cruzadas; este, ao longe, avistara o seu senhor, na
sacada do seu quarto. E, como conhecia todos os cantos do castelo, foi direito
à poltrona do reino. Ali, já sua majestade aguardava ansioso por ele.
Venerou-o e disse que estava ao seu serviço, em
prol do seu reino. O Rei sentiu a firmeza das suas palavras e, reunidos com os
conselheiros do reino, militares e escrivães, planearam toda a estratégia para
repelir o ataque vizinho, que estava preste a acontecer. Guilherme ouviu,
atentamente, tudo que se passava e, num gesto talentoso, construiu um documento
de parcerias de terras com o reino vizinho, onde se aceitassem, pois nada
ficava perdido. Eram terras em defeso que, nos próximos dez anos, de nada
serviriam e, em contrapartida, seriam dadas terras bravias que, sem que o reino
vizinho soubesse, estavam prontas a cultivo. Nas incursões que Guilherme fez,
por terras de além, soube também analisar solos, que à partida seriam incultos
e torná-los férteis. Com aquele salvo-conduto, poder-se-ia chegar a um acordo e
foi exatamente o que aconteceu. O acordo foi aceite e sem derramamento de uma
gota de sangue.
O Rei ficara deslumbrado com a manobra persuasiva
do estratega das Cruzadas, pois fazia-lhe lembrar os bons tempos com seu amigo
Bobo da Corte. E os olhares de ambos cruzavam-se, constantemente, como que
havendo algo para dizer um ao outro.
No dia seguinte ao acordo de paz, o sobrinho do
Rei convidou Guilherme para uma caçada, já que o Rei não podia, devido à sua
debilidade física. Enquanto percorriam os bosques em busca de caça, com toda a
comitiva, Guilherme aproveitou a distração momentânea do nobre para levar os cães
em busca de uma fictícia peça de caça que levava no alforge. Como se de algo
divino se tratasse, os cães, depois de cheirarem a peça de caça simulada,
desataram, num latir ensurdecedor, em direção ao nobre. Este, ignorando o que
realmente o cercava, protestava com os animais, mas sem sucesso, até que
Guilherme, num assobio aflautado, fez terminar aquela algazarra. O sobrinho do
Rei ficou surpreendido, com o modo tão eficaz, o de fazer parar aquele alarido,
protagonizado pelo estratega. Então questionou-o:
- Como fez isso… tão repentino e eficaz!?
Com a pretensão de fazer reavivar a memória ao
nobre, disse:
-
Conta-se, por estas terras vizinhas, que um dia, em tempos passados, o Bobo da
Corte foi expulso pelo Rei deste reino numa caçada, acusado de ter envenenado
os cães deste soberano. Mas, também se soube, mais tarde, que não tinha sido
ele que matara os cães, mas sim alguém inimigo por inveja da relação amistosa
entre os dois, o Rei e seu servo, o Bobo.
O nobre, ao ouvir a história, deu uma gargalhada,
dizendo:
- Ora,
ora! Toda a gente sabe que foi o Bobo que envenenou a matilha; ele queria ser
livre e o Rei não lhe dava essa liberdade, portanto…foi uma forma inteligente
de se ver livre do Rei.
O nobre pressentia que algo não estava bem,
naquele dia de caçada. Sem saber porquê, o estratega apresentava indícios de
alguém muito familiar ao trono de seu tio.
De volta ao castelo, entrou nos aposentos reais,
onde o Rei esperava por ele. Olharam-se nos olhos e o soberano notava que o
rosto dele lhe lembrava alguém muito chegado. Os olhos do estratega fulminavam-no
e, num olhar fulgente, o Rei reparou na cicatriz do pescoço de Guilherme,
aquando este compunha os seus longos cabelos. Então o Rei saltou da sua
poltrona, abriu os braços de satisfação e, num forte abraço, disse:
- Algo me dizia que eras tu, meu companheiro! Eu
sabia que só poderias ser tu para me salvar destas gentes atrozes! Perdoa as
minhas injustiças! Já soube quem envenenou os cães! Foi o malfeitor do meu
sobrinho…
Guilherme venerou o seu Rei:
- O destino trouxe-me a sua Alteza e eu estou
aqui para o servir, se assim o desejar!
O Rei, numa felicidade reluzente, dirigiu-se à
Corte:
- Faça-se
festa! O meu querido Bobo regressou, faça-se festa!